terça-feira, setembro 13, 2005

tens lume? não, mas tenho tempo

aguada de Catarina Almeida

um dia acordamos e percebemos tudo, fechamos os olhos mas percebemos tudo: o café que nos ofereceram um dia e se prolonga no lugar cativo a nosso lado sempre que a noite chega como um cigarro aceso, pessoas que são como lugares luminosos onde o fogo é o oxigénio possível, uma certa forma de ternura que atravessa os dias.
confessamos a ruína dos dias porque o medo nos trespassa como um fogo lento e a memória se insinua noite adentro como uma mulher jovem, fazemos longos tratados sobre a relatividade do tempo, falamos das janelas que fechamos para sempre num outono já distante e do abandono feliz entre outros braços, mas respiramos em posição fetal a vida toda como pequenos pássaros fugitivos e queimamos flores nas mãos até aceitarmos que o amor é breve.
imagina-te no teu tempo futuro, regressa a esse dia em que alguém te levou pela mão ao cimo dos telhados, puxou uma cadeira e lentamente te explicou os alfabetos. e se na tua cabeça mil ideias zumbirem inflamadas como que estremecidas, crê que alguma coisa muito pura em ti se sorri com a memória de longas tardes a meias numa mesa de café, esses certos instantes que, na passagem, mudam a nossa vida para sempre.


Isabel Coelho dos Santos



Isabel Coelho dos Santos nasceu em 1985, na Maia. Estuda Direito na Universidade Católica (Porto) e é directora da CRITÉRIO, revista de expressão e cultura dos estudantes dessa faculdade. Em 2004 foi escolhida para integrar a antologia Poesia à Mesa (Quasi Edições 2004) e publicou o tempo mais puro (Cosmorama Edições 2004); foi-lhe atribuído o Prémio Revelação José Maria du Bocage (Setembro 2005) pelo trabalho enquanto no corpo; integrará Nunca o verão se demorara assim nos lábios, edição dedicada a Eugénio de Andrade (Cosmorama Edições 2005).

Catarina Almeida nasceu em 1985, no Porto. Estuda Pintura na Faculdade de Belas Artes da Universidade do Porto. É ilustradora da Cosmorama.


Nota: Texto e aguada já publicados no JUP (Jornal Universitário do Porto) de Fevereiro de 2005.