quarta-feira, setembro 28, 2005


[mother death child], de Pablo Picasso


as mães dormem por dentro dos filhos, são
a pedra fechada no alpendre a gorgitar deus
e um coração de barro. mães cegas
transbordadas, derramam a mais demencial
ternura, morrem e gravitam como se fosse doce
sangrar, cobertas de chuva a moldar
barro no peito dos filhos, a tecer a eternidade
na boca dos filhos, a estrangular
seu coração de carne.



da violenta melancolia . setembro 2005

sábado, setembro 24, 2005

Ontem estive na apresentação do livro do José Rui Teixeira - assim na terra - e é magnífico esse lugar. Ouvir poemas destes ao som de Sigur Ros é quase etéreo, impuramente etéreo... uma humanidade com um pouco, um pouco mais de beleza.
Falei com o Jorge Melícias e com o valter hugo-mãe; e com o João Bateira e o José Nuno Magalhães. Há poetas que é mesmo um privilégio conhecer. Falei também com a Eunice Maia, sobre a dissertação de mestrado que está a fazer sobre a poesia do José Rui Teixeira: e foi um prazer.
E estavam lá os amigos, alguns antigos professores e outras pessoas muito especiais com as quais partilho as horas dos meus dias - não preciso dizer os nomes, mas deixo-te, Gonçalo, um obrigada especial. E estavam ainda amigos de amigos, amigos que vieram de longe. E é incrível que as pessoas ainda se reunam assim, pela corrente das palavras e dos afectos.
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Mother with two Children, de Egon Schiele
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Nasceste numa manhã como se fosse um lugar branco
e as mãos entranharam-se em ti para te dar à luz.
Mas não te deram asas no dia em que nasceste.
Nem te deram luz. Deram-te uma ferida e um coração
de carne e tiveste que aprender a ver através das
superfícies. Não te disseram que morrerias, nem
te deram um lugar branco onde pudesses morrer.
Tiveste que aprender que nunca é de manhã quando
se morre e que as mãos já não se entranham em ti,
mesmo que morras luminosamente.

Deram-te à luz,
mas não te deram asas no dia em que nasceste. Nem
te deram luz. E tiveste que aprender sozinho o ofício
de morrer. E um dia pareceu-te excessivamente escuro
o mundo, excessivamente escuro para ser manhã. E a luz
a que te deram quando nasceste pareceu-te um clarão
fóssil, excessivamente longe para o ofício de voar.
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José Rui Teixeira . assim na terra . cosmorama edições 2005
Water Serpents II, de Gustav Klimt
abro-lhe feridas onde a voz lhe rebente
muscular, penso se é de carne a graça, se
o desejo a queima como a um animal
doente. penso no tecido interior da boca
nas tremendas noites de maio plantadas
de pássaros.

penso. é brutal o amor
e a claridade, estrangularei deus
e a morte será nocturna
e branda.
Isabel Coelho dos Santos . da violenta melancolia . setembro 2005

segunda-feira, setembro 19, 2005


pinocchio dance, fotografia de fredrik ödman
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a verdade rebenta sobre as páginas,
a caneta é o prodígio a arder como sangue
nas artérias. penso escuto
e no meu pensamento a noite toda se enche
para que o poema jorre do tilintar dos talheres
e da criança que escuta deus atrás das portas.
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Isabel Coelho dos Santos . da violenta melancolia . setembro 2005

domingo, setembro 18, 2005

lançamento COSMORAMA

23 DE SETEMBRO DE 2005 > 21.30 HORAS
CAPELA DE FRADELOS

EUNICE MAIA apresenta
ASSIM NA TERRA
de JOSÉ RUI TEIXEIRA

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Capela de Fradelos > Rua Guedes de Azevedo, 50 > Porto

quinta-feira, setembro 15, 2005

Amanhã desloco-me a Setúbal para receber o Prémio Revelação Manuel Maria Babosa du Bocage 2005 pela obra enquanto no corpo. Agradeço o reconhecimento, congratulo-me com a iniciativa.


fotografia de Marília Campos


uma agulha atravessa-lhes
a garganta, abre-lhes fendas nas
pálpebras. no corpo dela
o rapaz espanta pássaros noite
adentro, bebe a madrugada esvoaçando.


Isabel Coelho dos Santos . in enquanto no corpo
Prémio Revelação Manuel Maria Babosa du Bocage 2005

terça-feira, setembro 13, 2005


foto in Público


meu filho morto procura uma breve boca.
mastigo frutos vermelhos e dou-me de comer,
beijarei com as videiras maduras
sua ausência profunda e amarga.


Isabel Coelho dos Santos . da violenta melancolia . setembro 2005

tens lume? não, mas tenho tempo

aguada de Catarina Almeida

um dia acordamos e percebemos tudo, fechamos os olhos mas percebemos tudo: o café que nos ofereceram um dia e se prolonga no lugar cativo a nosso lado sempre que a noite chega como um cigarro aceso, pessoas que são como lugares luminosos onde o fogo é o oxigénio possível, uma certa forma de ternura que atravessa os dias.
confessamos a ruína dos dias porque o medo nos trespassa como um fogo lento e a memória se insinua noite adentro como uma mulher jovem, fazemos longos tratados sobre a relatividade do tempo, falamos das janelas que fechamos para sempre num outono já distante e do abandono feliz entre outros braços, mas respiramos em posição fetal a vida toda como pequenos pássaros fugitivos e queimamos flores nas mãos até aceitarmos que o amor é breve.
imagina-te no teu tempo futuro, regressa a esse dia em que alguém te levou pela mão ao cimo dos telhados, puxou uma cadeira e lentamente te explicou os alfabetos. e se na tua cabeça mil ideias zumbirem inflamadas como que estremecidas, crê que alguma coisa muito pura em ti se sorri com a memória de longas tardes a meias numa mesa de café, esses certos instantes que, na passagem, mudam a nossa vida para sempre.


Isabel Coelho dos Santos



Isabel Coelho dos Santos nasceu em 1985, na Maia. Estuda Direito na Universidade Católica (Porto) e é directora da CRITÉRIO, revista de expressão e cultura dos estudantes dessa faculdade. Em 2004 foi escolhida para integrar a antologia Poesia à Mesa (Quasi Edições 2004) e publicou o tempo mais puro (Cosmorama Edições 2004); foi-lhe atribuído o Prémio Revelação José Maria du Bocage (Setembro 2005) pelo trabalho enquanto no corpo; integrará Nunca o verão se demorara assim nos lábios, edição dedicada a Eugénio de Andrade (Cosmorama Edições 2005).

Catarina Almeida nasceu em 1985, no Porto. Estuda Pintura na Faculdade de Belas Artes da Universidade do Porto. É ilustradora da Cosmorama.


Nota: Texto e aguada já publicados no JUP (Jornal Universitário do Porto) de Fevereiro de 2005.